sábado, 30 de março de 2013

Zero Hora - Um ano sem Millôr por Breno Serafini


     Saiu no último sábado, dia 30 de março de 2013, na Zero Hora o texto do autor Breno Serafini sobre um ano sem Millôr, vejam:

UM ANO SEM GRAÇA

Postura libertária radical marcou a atuação de um dos pensadores mais originais do Brasil, morto em março de 2012.

Este texto começa com uma nota de pesar. Pesar pela perda de um mestre que se dispôs a analisar a alma humana nos seus mínimos detalhes, a esquadrinhar contradições e destruir certezas sempre em busca da verdade, mesmo que soubesse que a mesma, em forma absoluta, não existe. Mas ele insistiu, pois, como diria Mario Quintana, em Das Utopias: “As coisas são inatingíveis… ora!/ Não é motivo para não querê-las…/ Que tristes os caminhos se não fora/ A mágica presença das estrelas!”.


Foi nessa busca que Millôr construiu uma obra extensa, dessacralizadora e provocativa, tendo por suporte o humor, humor que, ao fim e ao cabo, visava o homem, este, sim, potencialmente produtor de algumas verdades, mesmo que provisórias.



Passado um ano da perda do multiartista Millôr Fernandes, morto em 27 de março de 2012, que é possível dizer? Um vago sentimento de orfandade misturado à certeza de que, pelo menos, sua obra persistirá. E na sua obra, construída com uma irreverência ipanêmica, desdobra-se, mais que um estado de espírito, uma refinada linguagem (e ilustração) como forma de decifrar, julgar, corromper (no bom sentido) e dessacralizar qualquer tipo de dominação.



Aos que se julgam acima de eventuais críticas, suas frases, suas máximas são demolidoras, a dizer coisas como: “Existe alguém tão miserável que um dia não tenha explorado alguém mais miserável?” ou “Podem fazer a Constituição que quiserem. Por mais liberal, por mais igualitária que ela seja, sempre haverá pessoas que darão um jeito de se tomarem escravas das outras”. Ideologicamente, então, a anarquia milloriana não perdoa: em tempos de cachoeiras e mensalões, sempre se faz atual a palindrômica “a mala nada na lama”, ou então, o retrato de nossos dias: “Perdeu-se uma ética a caminho de uma democracia”. Isso, por si só, já bastaria, mas há mais, basta uma olhadela em seu A Bíblia do Caos (1994), para encontrar, no fundo, uma conversa muito séria: a dissecação da natureza humana, em diálogo com o leitor que não excluía qualquer possibilidade, o importante era (e é) questionar, subverter. Até porque, sabia ele, à maneira de Guimarães Rosa: “Um mentir é do que mente, mas outro é do escutador”.



Talvez nem todos concordem, mas Millôr, definitivamente, é um dos maiores pensadores brasileiros, não apenas da atualidade. Sua obra continuará necessária, pois o homem, de qualquer tempo, sempre será falho, frágil, e, na busca de uma saída heroica, repetidas vezes escorregará na tragédia. Millôr escolheu a arma da ironia para retratar a sua (nossa) aldeia, sempre questionador, muito sério. Nesse sentido, ficam ainda, como um recado, ecoando suas palavras: “E se a vida for do outro lado?”.



Na outra ponta do riscado, em “No princípio era o verbo. Defectivo, naturalmente”, temos a ação que poderia servir como pedra fundamental de uma poética criativa, questionadora, de um espírito iconoclasta e sardônico. E a mesma obra que destrói ícones também os constrói, na medida em que – homem de seu tempo – a imagem tem uma força determinante para estabelecer parâmetros de que a linguagem escrita, mesmo em toda a sua complexidade, nem sempre consegue dar conta.



No caso de Millôr, palavra e imagem se fundem, constituindo um amálgama difícil de ser separado, suscitando o debate sobre quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha. A gênese, sob esse aspecto, não importa, mas é necessário dizer que a palavra vem em primeiro lugar. Em primeiro, porque é com ela que construímos os nossos pensamentos, como diria Lacan; em segundo lugar, porque, mesmo Millôr, que opera com as duas linguagens, afirma: “Os chineses têm uma frase que se repete aí cansativamente: ‘Uma imagem vale mil palavras’. E eu sempre digo: ‘Diz isso sem palavras!’”.



Podemos encontrar, nessa definição, uma crítica a seu tempo, em que o suceder de imagens parece colá-las umas às outras, compondo um discurso teleimagético que satura o olhar, muitas vezes sem dar a perceber esse excesso luminoso, ofuscante pela artificialização da realidade. Do outro lado está a palavra, a trabalhar com o claro e o escuro do discurso, com seus múltiplos sentidos, ironicamente abrindo espaço para várias vertentes interpretativas. Se somarmos a isso a fragmentação do texto, teremos o discurso milloriano a pleno, verdadeiro “jogo da amarelinha”, entre a terra e o céu.



Na fricção da pedra lascada desse discurso, ele ilumina as palavras e as frases com sentidos inusitados, novos, velhos, antagônicos, oferecendo uma linguagem viva, cheia de contradições e brechas, assim como a sociedade, com seus micro e macropoderes, porque, sabe ele, ninguém nasce ditador ou mistificador, a não ser que alguém o autorize.



Talvez isso seja o que mais lhe cause espanto: num mundo cada vez mais tecnológico, com a informação cruzando fronteiras recém derrubadas (tanto geográfica quanto politicamente), a sacudir consciências, lá está o homem domesticado, à espera do seu algoz da hora. Talvez por isso, ele, um dos artistas plásticos que logo aderiram à criação eletrônica, servindo-se do computador para criar outras paisagens, experimentar novas linguagens, tenha aberto sua série “Arte é intriga” com uma representação de O Grito de Munch. A ele continuava inexplicável que os homens se submetessem, tão servilmente, a outros homens ou instituições. A constatação não o impedia, porém, de solidarizar-se com esse homem, visto que declara: “Sou um humanista. (...) aceito o ser humano como ele é: medroso, primário, invejoso, incapaz, acertando por acaso e errando por vaidade, incompetência e cobiça: meu irmão”.



O riso, sua arma mais contundente, corta como uma navalha, ciente de que o intelectual deve provocar perguntas mais do que encontrar respostas, até porque a resposta que serve a um não serve, necessariamente, a todos. Mas, líquida e certa, nessas relações cada vez mais cambiantes e transitórias, a sua intervenção sempre propicia a reflexão.



Assim, entre o malandramente jocoso e o sério acariocado, elabora a sua síntese definitiva, que tanto pode valer para o calor dos trópicos quanto para as gélidas partes do Globo ou onde o homem se fizer presente: “Viver não é biscoito”.

Doutor em Letras pela UFRGS, autor de Millôres Dias Virão, que será publicado em abril pela editora Libretos
BRENO SERAFINI

Millôres Dias Virão
De Breno Serafini
Libretos, 212 páginas, R$ 28
Poeta além de acadêmico, Serafini lança em maio, pelo selo Universidade da editora Libretos, uma obra na qual usa a atuação de Millôr como artista e homem de imprensa para produzir um estudo sobre as relações entre arte, humor e o papel público do intelectual. O livro discute a visão de mundo expressa nas charges e nos textos do humorista do Méier.


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