COLIGAY: ORGULHO E PRECONCEITO
08/05/2014 por Tabaré
Pioneira ao levar a sexualidade para o meio do futebol, a
Coligay é uma página do Grêmio que poucos conhecem bem. Uma história que
deveria ser motivo de orgulho, mas que segue envolta em preconceito.
Por Antônio Felipe Purcino*
Fotos por Yamini Benites
Um dos principais tabus no meio do futebol é a questão da
sexualidade. Nas redes sociais, termos como “viado” e “bicha” são utilizados de
forma pejorativa entre os torcedores para se referir aos adversários. O jogador
Richarlyson é apontado como homossexual por onde passa. No ano passado, um
selinho do atacante Emerson Sheik, do Corinthians, em um amigo, gerou uma
revolta intensa de parte dos torcedores do clube. Enquanto na Europa há uma
inclinação maior à abertura – em janeiro, o ex-meio-campista da seleção alemã,
Thomas Hitzlsperger, assumiu sua homossexualidade –, no Brasil há um silêncio
quase absoluto sobre o tema. Mas o que poucos sabem é que, na década de 1970,
uma torcida do Rio Grande do Sul ousou colocar a sexualidade de forma
transgressora nas arquibancadas.
Domingo, 10 de abril de 1977. No Estádio Olímpico, em Porto
Alegre, o Grêmio venceu o Santa Cruz por 2 a 1, em mais uma rodada do Campeonato Gaúcho.
Poderia ser uma partida como qualquer outra. Entretanto, algo diferente surgiu
naquele dia. E não estava dentro de campo. Vinha das arquibancadas do ainda
inconcluso estádio. Um grupo de torcedores chamava a atenção. Não era uma
torcida comum. Algo histórico estava nascendo: a torcida Coligay.
Antes de falarmos da Coligay, é preciso recuperar a história
de Volmar Santos. Nascido em 1948, na cidade de Passo Fundo, Santos vivia em
Porto Alegre em 1977. Era gerente da Boate Coliseu, referência no cenário gay,
localizada na Avenida João Pessoa. Gremista “desde sempre”, ele estava
incomodado com as torcidas da época. “As torcidas eram muito frias, não
incentivavam como deveriam”. Em uma noite na Coliseu, decidiu criar um grupo
próprio para torcer. O nome escolhido foi Coligay, remetendo à boate e a seus
frequentadores.
A torcida começou com cerca de 40 pessoas. A estreia foi
contra o Santa Cruz, já contando com a faixa e as características que tornariam
a Coligay tão marcante: a animação dos integrantes, as danças, os cantos e
figurinos incentivando o Grêmio o tempo todo. “Tínhamos a melhor charanga, comandada
pelo Neri Caveira, da Imperadores do Samba”. A cada partida do clube, a Coligay
estava presente “Não perdíamos um jogo. Fomos para o interior, Curitiba, Rio de
Janeiro e São Paulo”, conta Volmar. O número de torcedores só crescia, chegando
a mais de cem. E não precisava ser gay para fazer parte. O único requisito era
ser gremista.
A novidade nas arquibancadas tricolores logo chamou a
atenção de todos. Até a mídia do centro do país esteve em Porto Alegre para
conferir o grupo, que foi tema de matéria na revista Placar. “Não tinha noção
de que a torcida teria uma proporção tão grande”, diz Volmar. Inclusive, a
Coligay foi convidada à partida que decidiria o Campeonato Paulista de 1977,
entre Corinthians e Ponte Preta, apoiando o time da capital. O convite partiu
do presidente do clube paulistano, Vicente Matheus. Dezenas de torcedores foram
a São Paulo, onde acompanharam a vitória de 1×0 do Corinthians, pondo fim a um
jejum de quase 23 anos sem títulos do clube.
Do lado do Internacional, alguns torcedores aproveitavam a
torcida para tentar incomodar gremistas. Já outros desejavam fazer parte da
Coligay. “Alguns queriam se entrosar, mas não permiti. Sugeri que criassem a
Intergay ou a Inter-Flowers”, afirma Volmar, em referência à Boate Flowers,
outro famoso reduto gay da capital gaúcha.
Apesar de surgir em meio a um contexto de ditadura militar,
período no qual não se discutia a sexualidade, o criador da torcida garante que
o grupo nunca sofreu nada grave nem foi impedido de estar nos jogos. “Nunca
fomos agredidos. Sofremos algumas ameaças, mas nada aconteceu”. De parte da
direção do clube, havia respeito. “Hélio Dourado [presidente do Grêmio na
época] é uma pessoa fora de série. Ele sempre me recebeu e nos tratou bem”, diz
Volmar. Já entre os jogadores, alguns não gostavam, outros apoiavam – como
Tarciso, ex-ponteiro-direito e atualmente vereador em Porto Alegre: “Setenta
por cento [dos jogadores] não gostava. Eu era muito querido pela Coligay. Fazia
gol e ia lá vibrar com eles”. Volmar credita o êxito à presença de “pessoas de
bem” na torcida. Tudo era feito “com muita responsabilidade”.
O sucesso da Coligay na época incentivou o surgimento de
outras torcidas compostas por homossexuais no país. No Rio de Janeiro,
torcedores de Flamengo e Botafogo tentaram criar a FlaGay e a FoGay. Tentativas
semelhantes ocorreram entre apoiadores do Cruzeiro e Sport. Somente a Coligay
resistiu, até 1983. Volmar teve que deixar Porto Alegre para voltar a Passo
Fundo a fim de cuidar de sua mãe. Sem seu idealizador, a Coligay não conseguiu
mais se estruturar. Após seis anos, a torcida deixava de existir. Volmar ainda
reside em Passo Fundo, onde assina uma coluna social no jornal O Nacional.
Desde então, a Coligay se tornou um assunto pouco discutido,
sendo hoje lembrado, na maioria das vezes, em piadas feitas por colorados
contra gremistas. Para mudar esse quadro e resgatar a história da torcida, será
lançado pela Editora Libretos um livro contando essa história: Coligay –
Tricolores e de todas as cores, do jornalista Léo Gerchmann. Ao longo de
cinco meses, Léo conversou com ex-integrantes da torcida, jogadores, dirigentes
e outras fontes para trazer à luz uma história da qual pouco se fala
atualmente. “O livro é sobre a Coligay, mas é também sobre diversidade. E a
Coligay é uma página muito bonita da história do Grêmio”, diz Léo.
Tarciso: “Eu era muito querido pela Coligay.
Fazia gol e
ia lá vibrar com eles”
Se na década de 1970 a torcida era vista de forma respeitosa
por parte dos torcedores e também pelo próprio Grêmio, hoje ela faz parte de
uma história que poucos têm coragem de relembrar. E que traz à tona o debate
sobre a inserção da sexualidade no futebol.
Para Bernardo Amorim, coordenador jurídico da ONG Somos, que
discute questões de sexualidade, é preciso que alguém abrace tal causa. “Seja
clube, federação ou jogador, alguém tem que fazer algo para que o assunto
chegue à torcida”, diz. Ele cita como exemplos a declaração do goleiro
Lindegaard, do Manchester United, que declarou que “o futebol precisa de um
herói gay”, além da torcida do St. Pauli, da Alemanha, que faz bandeiras contra
a homofobia e todas as formas de discriminação.
Amorim considera que o Grêmio deveria reservar um espaço
para falar da Coligay. “O reconhecimento é importante, pelo contexto histórico
e pela coragem. Não se pode apagar isso”. Ele afirma ainda que a discussão no
Rio Grande do Sul somente daria certo se fosse feita tanto pelo Grêmio como
pelo Inter. “As coisas aqui não funcionam por um lado só. O ideal seria uma
ação conjunta. Ninguém teria como acusar o outro”. A reportagem entrou em
contato com o clube para saber qual o posicionamento oficial em relação à
Coligay, mas não recebeu resposta até o fechamento.
E se a Coligay ressurgisse hoje, poderia dar certo? Volmar
acredita que sim. “Com certeza, se for sério, com responsabilidade e com alguém
sério na liderança”. Ele acrescenta que, se morasse em Porto Alegre, “ajudaria
a Coligay a se estruturar de novo”. Amorim opina que uma nova Coligay geraria
briga entre as torcidas. “Mas se um coletivo de pessoas se junta para ver o
jogo, daria mídia e o clube não poderia mandar tirar. A proibição seria pior do
que permitir”.
Entre todos, permanece o sentimento de que a Coligay deveria
ser reconhecida como merece. Uma torcida pioneira, transgressora, que enfrentou
o conservadorismo e deixou sua marca na história. Afinal, acima de suas cores,
sexualidades e ideologias, todos são torcedores do Grêmio.
*Essa matéria foi vencedora do Concurso de Reportagem
realizado pelo Diretório Acadêmico da Comunicação – UFRGS, no final de 2013.
Uma das premiações foi a publicação junto ao Jornal Tabaré.
Link para a matéria original: http://jornaltabare.wordpress.com/2014/05/08/coligay-orgulho-e-preconceito/
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