quinta-feira, 19 de abril de 2012

A amante do lobo, inspira artigos - Parte II

Quando o amor é um vício
Rosane Monteiro Ramalho*

    Recentemente, no Rio de Janeiro, participei de um debate por ocasião do lançamento de um livro: A amante do lobo, de Ana Paula Fohrmann (1). A discussão desenvolveu-se a partir de uma relação estabelecida entre seu livro e a obra de Simone de Beauvoir – em especial, A mulher desiludida (2).

     A questão que a autora propôs para o debate, e que foi o mote de seu romance, era: como mulheres contemporâneas, independentes, bem sucedidas profissionalmente, acabam presas numa relação de extrema dependência para com seus parceiros, numa relação de submissão a eles.

     A questão apresentada pela autora parece ter semelhança com algo que também se encontra, com certa frequência atualmente,  nos consultórios: um significativo número de mulheres que acabam se envolvendo com parceiros com os quais elas não conseguem estabelecer uma vida amorosa efetiva. Elas angustiam-se por estas relações serem inviáveis e procuram tratamento em função disto – e por justamente desconhecerem o que as leva a manterem tais relacionamentos, apesar da insatisfação e da angústia que lhes causam.

     A estória do livro gira em torno de uma mulher de 42 anos de idade, que mantinha uma relação amorosa havia seis anos com um homem de 60 anos, casado, que residia em outro país: ele, um dentista que morava em Amsterdã, e ela, uma professora universitária que vivia em Nancy. Sua vida se reduzia ao seu trabalho, à espera pelos telefonemas que o amante só fazia nas brechas de seu tempo – entre seu trabalho e sua vida familiar –, e aos raros encontros que tinham (nos quais, geralmente, era ela quem ia à  cidade dele). Quase não saía com os poucos amigos que tinha. Optava por ficar aguardando as chamadas do amante. Sua vida era um grande vazio, e para aplacar a sua dor e a sensação de sentir-se oca, meio morta, lançava mão de uma infinidade de tranquilizantes. Várias vezes se colocou em situação de risco, ao misturar osbarbitúricos com bebida alcoólica, chegando certa vez, a ter uma overdose – ocasião em que acabou por ser hospitalizada. Costumava também, em momentos de muita angústia, vomitar, como se tentasse colocar para fora este seu mal-estar, uma vez que não conseguia lidar de outra forma com o que lhe atormentava. Não conseguia encerrar seu relacionamento. Tinha necessidade deste homem, em relação a quem sentia-se desamparada e abandonada.  

    Na verdade, o vazio que sentia remetia a um outro, bem mais precoce em sua história, ligado ao primeiro homem de sua vida. Seu pai morreu quando ela já era adulta, porém, para ela, era como se ele já estivesse morto há muito tempo, aliás, desde sempre! E, por isso, devido a este vácuo paterno, na sua relação com o amante havia um claro pedido por um pai. Não por nada, ela sentia-se atraída pelo proibido (conforme ela mesma falava) e acabara se apaixonando por um homem mais velho e casado. Os momentos que mais gostava eram aqueles nos quais ele a pegava no colo, fazia-lhe um carinho, numa atitude paternal.

    As meninas abandonam a relação exclusiva que toda criança tem com a mãe e passam a amar o pai. Mais tarde, dá-se uma outra passagem em que elas abrem mão do amor pelo pai para o endereçarem a um outro sujeito, caracterizando, assim, a saída do Édipo. Estes dois deslocamentos configuram a sua transformação de menina em mulher. O problema parece surgir quando, em determinadas circunstâncias, há uma insistente necessidade de uma mulher encontrar um pai no parceiro amoroso. Esta era a questão da personagem do livro, e que se encontra também muitas vezes na clínica: a dificuldade de uma mulher aceder a uma relação amorosa efetiva por estar ainda, como uma menina, à procura de um pai. Situações complexas também acontecem quando uma mulher procura por uma mãe em seus relacionamentos. É conhecida a dificuldade identificatória dos sujeitos que se constituem no lado feminino (independentemente de seu sexo biológico)  (3). São sujeitos que lidam com uma maior indeterminação em seus processos de constituição subjetiva.

    Em janeiro de 1968, foi lançado o livro A mulher desiludida, de Simone de Beauvoir, com uma tiragem de cinqüenta mil exemplares que se esgotou em apenas oito dias. Apesar do sucesso de vendas, causou grande polêmica na época. A crítica foi impiedosa, por esperar outra coisa de uma escritora reconhecida pelo feminismo. No conto que dá o título ao livro, Simone de Beauvoir fala de uma mulher que vê seu mundo desmoronar ao saber que seu marido tem uma amante. Monique, nome da personagem principal, é uma mulher de 44 anos, que não trabalha e só se dedica às filhas (que já saíram de casa) e ao marido. Ao ser abandonada por ele, sente que sua vida perde o sentido, e não tem mais vontade de viver. De forma a não perder o marido, ela aceita dividi-lo com a amante. Esta situação, porém, acaba se tornando insuportável quando ela se dá conta de que o marido deseja manter a relação  com a amante e propõe a ela que passem a viver em casas separadas. Isso tudo a leva a uma dolorosa experiência de abandono.

     No livro A amante do lobo, a angústia de abandono também é questão central. Porém, neste caso, é a amante e não a esposa que se sente abandonada, principalmente ao ouvir do  homem que ama que ele nunca deixará a sua esposa. Este sentimento de abandono se intensifica quando escuta do amante, ao falar de uma conversa que ele tivera com um amigo  também casado e que tinha se apaixonado por uma garota, que a relação entre eles era inviável. Estas duas revelações têm sobre ela um poder devastador. Ela se dá conta de que ele nunca iria assumir efetivamente o relacionamento e que o que havia entre eles era um amor inviável.

     A angústia de abandono é frequente nas mulheres. Conforme já apontava Freud  (4), diferentemente da angústia de castração, mais comum nos homens, o que caracteriza as mulheres é o temor da perda do amor. Como sabemos, no amor, o parceiro amoroso, como um espelho, outorga ao sujeito uma imagem de si. Por isso, um rompimento amoroso – a perda deste espelho – é sempre um momento tão difícil para o sujeito, podendo, inclusive, ser devastador para certas pessoas subjetivamente mais frágeis  5. Nesses casos, o rompimento amoroso pode levá-las a um profundo desamparo, a uma depressão ou, em circunstâncias extremas, ao suicídio. Nestas situações de fragilidade subjetiva, o parceiro amoroso acaba tendo uma função de efetiva sustentação psíquica – de suporte narcísico –, com o qual essas pessoas estabelecem uma relação de extrema dependência. Assim, mais do que da ordem do desejo, a relação estabelecida parece ser da ordem da necessidade, caracterizada por uma profunda dependência  do parceiro amoroso. Elas, então, pela impossibilidade de lidarem com a falta simbólica (castração), acabam precisando dele como se se tratasse de uma necessidade imperiosa, tal qual um vício. Um vício no sentido de se buscar realmente um preenchimento da falta, sem haver, portanto, a possibilidade de um deslizamento ou de um substituto. Assim, mais do que uma posição propriamente de sujeito, elas parecem ocupar uma posição de objeto, por se encontrarem numa relação de alienação em relação ao seu parceiro. Esta parecia ser a questão da personagem principal do livro de Fohrmann na sua relação com o amante. Conforme ela mesma dizia: 

“Há anos, creio, minha vontade é uma extensão do que ele permite que eu seja: sua filha, sua amante, um objeto talvez”. (pág. 8).

“O que sou de verdade, sinceramente, não sei. Ao conhecê-lo em Praga, soube que me
viciaria e perderia parte de minha identidade. Convivo há muito tempo com o meu vício. Aceitei, enfim, a minha dependência” (pg. 38).

    Em Praga, no início do relacionamento dos personagens, houve um acontecimento que pareceu ter sido decisivo para ela em seu apaixonamento. Ela  contou ao amante sobre o sonho que tivera na noite anterior. Havia sonhado com seus alunos em sua sala de aula, mas todos tinham em torno de cinco anos de idade. Eles a temiam, porque costumava bater neles. Um dos alunos, porém, era muito levado e puxava os cabelos das coleguinhas, que choravam e reclamavam junto à professora. Este aluno “capeta” era justamente o amante. Como castigo, ela o colocou sobre as suas pernas, abaixou-lhe as calças e lhe bateu. O amante, após escutar o relato do sonho, a beijou e, enquanto a beijava, prendeu as suas mãos nas costas e a virou de bruços por sobre as suas pernas. Ela sentia falta de ar de tanto rir, já imaginando o que sucederia. Ele, então, passou a lhe bater no traseiro, o que a levou a uma intensa mistura de dor e prazer, a ponto de urinar-se durante o êxtase, pois quanto mais ela ria, mais ele lhe batia.

     O gozo que ela sentiu ao ser batida – cena definidora desta relação amorosa – nos remete à fantasia masoquista feminina de ser batida, conforme Freud já falava em seu texto “Uma criança é espancada” (6), bem como nas suas considerações acerca do masoquismo feminino, em seu artigo “O problema econômico do masoquismo” (7).  Nesta cena, a fantasia de ser batida pelo pai parece ganhar corpo, havendo uma equivalência entre ser batida e ser amada por ele. Helene Deutsch  (8) também considera o masoquismo, ou melhor, a “tríade masoquística” (castração, violentação e parto) como a expressão  princeps  da fantasia feminina. Assim, o pai faz de sua filha uma mulher, batendo no seu corpo. Esta seria, então, a origem do erotismo feminino, ligado fundamentalmente ao masoquismo.

     As clássicas associações da feminilidade à passividade, e da masculinidade à atividade, parecem derivar desta forma de subjetivação,  considerando-se as distintas formas de inscrição da castração (independentemente dos sexos biológicos). Para ambos os sexos, em seu encontro com o Outro, a passividade da criança é primordial, mas por ser insustentável e despedaçante, ela é seguida pela entrada na atividade que representa o falicismo. É só num terceiro tempo que se coloca a eventualidade  de uma passividade propriamente feminina. Por isso, uma mulher na posição feminina teria mais disponibilidade para encarnar o objeto da fantasia masculina.

    Neste sentido, a feminilidade corresponde à passividade. No entanto, não a uma posição passiva de alienação ao Outro, mas de uma passividade ativamente buscada, na qual ela se faz objeto e não o é – o que são posições muitíssimo diferentes (9). 

    Neste sentido, uma mulher pode ser um sujeito e conduzir sua vida com autonomia e, no exercício de sua sexualidade, gozar numa posição passiva, ou seja, desejar ser dominada por um parceiro fálico, viril. A fantasia que comanda seu desejo está relacionada a esta receptividade, a esta certa passividade, na qual ela se faz objeto, se deixa colocar na posição de objeto. Bem diferente é uma mulher que justamente não consegue aceder a uma posição desejante. Ao invés do desejo, o que se impõe a ela é da ordem da necessidade imperativa – como no vício –, justamente pela impossibilidade da castração. Muitas vezes, inclusive, embora ela acredite que queira construir uma relação amorosa, sem se dar conta, ela acaba justamente obstaculizando-a.

    Mulheres que acabam se envolvendo com parceiros inviáveis muitas vezes desconhecem que justamente são elas mesmas que acabam fazendo estas escolhas. Atribuem ao outro, ou mesmo ao destino, a responsabilidade pelo seu mal-estar, vitimizando-se. É somente quando conseguem se implicar, vendo o que há delas no seu sofrimento, que torna-se possível para elas desvencilharem-se dos scripts até então imutáveis e rígidos. Passam a visualizar outras saídas, a inventar outros caminhos, acedendo,  assim, a outras maneiras de existir. No epílogo do livro A amante do lobo, a personagem principal consegue, finalmente, abandonar seu vício, abrindo-se para uma nova relação amorosa, desta vez, então, possível.

    É curioso notar que em todo o livro, nenhum dos personagens tem nome. O único a ser nomeado é justamente o homem a quem a personagem, não mais precisando buscar um pai, consegue finalmente encontrar. Ele se chama André.

  1. Fohrmann, A amante do Lobo (2009).
  2. O livro consiste em três contos: A idade da discrição, Monólogo, e A mulher desiludida (mesmo título do livro).
  3. Sobre isso, ver seminário 20 de Lacan: Mais, ainda.
  4. Em “Inibições, sintomas e ansiedade” (1925) e em “Ansiedade e vida instintual” (1932).
  5. Desenvolvi mais amplamente essa questão em: “Uma melancolia tipicamente feminina” (2001).
  6. Fantasia que, porém, segundo Freud (1919), pode ser encontrada tanto em meninas como em meninos
  7. Freud (1924).
  8. Deutsch , em Masoquismo ”feminino” e a sua relação com a frigidez .
  9. Quanto a isto, podemos fazer uma relação com as considerações de Lacan (seminário 20: Mais, ainda) sobre o gozo feminino enquanto gozo Outro, outro que o fálico, diferenciando-o do gozo do Outro (relacionado a uma posição de alienação ao Outro, posição de objeto).


Referências Bibliográficas
  • BEAUVOIR, Simone. A mulher desiludida – Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de São Paulo, 2003.
  • DEUTSCH, Helene. “Masoquismo ‘feminino’ e a sua relação com a frigidez”. In Boletim da APPOA, n. 2. Porto Alegre, 1990.
  • FOHRMANN, Ana. A amante do lobo – Porto Alegre: Libretos, 2009.
  • FREUD, Sigmund. “Uma criança é espancada” (1919). In ___ Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. XVII.

______. “Ansiedade e vida instintual” – Conferência XXXII (1923). In Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. XXII.
______. “O problema econômico do masoquismo” (1924). In Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. XIX.
  • LACAN, Jacques. O seminário: livro 20: mais, ainda (1972-73). Rio de Janeiro Jorge Zahar, 1985.
  • RAMALHO, Rosane. “Uma melancolia tipicamente feminina”. In Revista da APPOA, n.20. Porto Alegre, 2001.


*Psicanalista, membro da APPOA, mestre em Psicologia Clinica (PUC/SP).Trabalha há vinte anos em Programas de Residência Integrada em Saúde Mental como professora, orientadora, e supervisora. Em Porto Alegre na Escola de Saúde Pública, Hospital Psiquiátrico São Pedro, na do Ministério da Saúde e UFRGS. Atualmente, Trabalha no Programa de Residência Médica em Psiquiatria e Residência Multiprofissional em Saúde Mental do Instituto Philippe Pinel, no Rio de Janeiro, e segue coordenando seminários da APPOA.

Livro publicado pela Libretos:

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