Pioneira e pé-quente, torcida de gays do Grêmio ganha livro
30 anos depois
Grupo chamado Coligay agitou por seis anos a arquibancada do
Olímpico durante a ditadura militar e foi testemunha de grandes títulos;
história é recontada por jornalista
Aos torcedores do Corinthians que sustentaram faixas de
repúdio ao selinho de Emerson Sheik num amigo em 2013, vale uma viagem no
tempo. A 1977, quando o folclórico presidente do clube paulista, Vicente
Matheus, ligou para Volmar Santos e pediu que sua animada torcida, com fama de
pé-quente, saísse do Rio Grande do Sul e fosse ao Morumbi ajudar o Timão a
findar um jejum de 23 anos sem títulos, diante da Ponte Preta. E deu certo. Uma
mostra da força e do pioneirismo da breve porém intensa Coligay, torcida organizada
do Grêmio formada por homossexuais entre o fim dos anos 1970 e início dos 1980.
Que, agora, ganha livro, no texto do jornalista gaúcho Léo Gerchmann. Com cara
de homenagem e acerto de contas para uma legião de gremistas, um tanto
esquecida e, quando lembrada, alvo de piadas. Mas a Coligay era coisa séria.
O livro “Coligay, tricolor e de todas as cores” (Editora
Libretos, 192 páginas, R$ 35) será lançado em 13 de maio, na livraria Saraiva,
do shopping Praia de Belas, em Porto Alegre. Surgiu de uma inquietação de Léo,
repórter especial do jornal “Zero Hora” e com 11 anos na “Folha de S. Paulo”,
entre outras redações e coberturas de peso. Hoje aos 49 anos, já conhecia a
história desde os tempos em que ia com o pai Henrique, conselheiro do clube, ao
Olímpico. Não gostava de ver seu filho se perguntando se o Grêmio primava pela
intolerância. Resolveu colocar tudo no papel.
- Eu tinha isso fermentando na minha cabeça há muito
tempo. Não conheço um episódio de aceitação do diferente mais forte do que
esse. Tenho muito orgulho de torcer para esse clube – explica, ao
GloboEsporte.com.
Léo não teme repercussão negativa de segmentos mais
conservadores da torcida. Pelo contrário. Diz que 95% dos comentários alertam
para a necessidade de o assunto ser abordado. Aos outros 5%, recomenda,
categórico:
- Além, claro, da dedicatória aberta ao meu pai (que chegou
a ter um minuto de silêncio no Olímpico sem a família pedir), o livro é de
certa forma a esses caras (preconceituosos). O livro é para eles, para abrir a
cabeça. Quando escuto comentários jocosos sobre a Coligay, só me convenço da
importância de entrar no tema. Tenho a pretensão de que esse trabalho se
transformará num documento sobre o assunto.
alegria em tempos de chumbo
Precisou de quase um ano, entre maio e dezembro de 2013,
para escrever uma história que começou muito antes. Foi em 1977, tempos
difíceis nas ruas, de ditadura militar, que o “agitador social” Volmar Santos,
personagem principal da obra, resolveu aliar o gosto por festas com a paixão
pelo seu Grêmio. Na ocasião, era dono da boate Coliseu, reduto gay na sisuda
Porto Alegre dos generais. Em campo, também não estava fácil. O Grêmio tentava,
a todo custo, evitar o nono campeonato estadual seguido do Inter, que já havia
vencido o Brasileiro em 1975 e 1976.
Daí o nome Coligay. Vem do nome da boate, que passou a
ganhar ainda mais fama com o crescimento da torcida na arquibancada do
Olímpico. Inclusive jogadores a frequentavam. Não que fossem necessariamente
homossexuais. Regado ao som do grupo Abba, o ambiente convidava qualquer
orientação sexual. Valia a diversão. Valia até receber o conservador Telê
Santana. Mas o técnico, que faria história naquele ano, rumava a Coliseu apenas
para tentar flagrar algum atleta seu em peripécias noturnas.
Mas Volmar os protegia. Como também protegia os seus
coligados, providenciando aulas de caratês. Porque o início, não é difícil
supor, foi complicado. Todos olhavam aquela turma de cantos diferentes, túnicas
listradas e saltinhos chamativos com total desconfiança. Dirigentes, jogadores
e, claro, a própria torcida gremista.
- Hoje, todos que consultei têm um discurso muito favorável.
Os próprios jogadores mudaram muita sua posição com o passar do tempo – conta
Léo, após entrevistar mais de 30 pessoas.
Mas futebol é resultado. Até para uma torcida organizada. A
Coligay estreou, para assombro do Olímpico, numa vitória protocolar sobre o
Santa Cruz, 2 a
1, pelo Gauchão, em 10 de abril de 1977. No fim de semana seguinte, nova
vitória, um largo 3 a
0 diante do… Inter! Estava começando a se consagrar a sua fama de pé-quente.
Inclusive na mídia, que passou a tratá-la como realidade. Na maioria das vezes,
a Coligay acabava caindo na vala do humor de Carlos Nobre, de “Zero
Hora”.
Os próprios membros da Coligay também não perdiam uma boa
piada. Tinham cânticos especiais e cheios de bom humor para jogadores. E
colecionavam os seus preferidos, como o zagueiro reserva Cassiá, que virou
treinador e político. Depois, viria Renato Gaúcho, tratado como “sex symbol”.
Aliás, os atletas, aos poucos, passaram a aprovar aquela incomum torcida. O
motivo? A incrível capacidade de jamais parar de apoiar. Leo Gerchmann reproduz
no livro um trecho de reportagem da revista “Placar”, que dimensiona como eles
torciam:
- Aquele grupo superava em animação as outras duas torcidas,
batendo os seus tambores e berrando o tempo todo.
Torcida organizada era artigo raro, como explicou Gerchmann.
No Grêmio, havia a torcida oficial, do Departamento Eurico Lara. E só. Em 1974,
surgiu uma dissidência dela, a Força Azul. Depois, a Coligay, que chegou a
convencer alguns dos membros dessa última, que migraram para a turma mais
alegre. Que também aceitava heterossexuais, obviamente. Havia muitos deles,
sobretudo os instrumentistas. A Coligay começou com 60 pessoas, chegou a ter
200, um pouco mais, um pouco menos, que iam desde a boate Coliseu até o
Olímpico, em dias de jogos, como reza o hino do clube, a pé, quase sempre de
ressaca.
Nem todos os integrantes da Coligay abriram seus nomes na
publicação de Léo Gerchmann, que usou diversos instrumentos para localizá-los,
inclusive perfis de redes sociais. Há um casal que se encontra até hoje, e um
deles mantém uma vida heterossexual. Boa parte morreu consumida pela pandemia
da Aids. Mas conseguiu ver o time campeão gaúcho em 1977, título histórico, e a
construção do esquadrão que, mais tarde, seria campeão brasileiro, continental
e mundial. Depois de 1983, a
pé-quente Coligay esmoreceu. Virou purpurina, como brinca Volmar no livro.
Muito porque o próprio Volmar voltou para a sua Passo Fundo, desarticulando o
movimento.
- O mais importante é que a Coligay foi pé-quente para que o
Grêmio voltasse a conquistar títulos – resumiu Volmar, mostrando que, no fim, o
objetivo era o amor ao clube.
Deixou, no entanto, um legado além. Diante de uma
modernidade salpicada de crimes, racismo e jovens mortos até com arremesso de
privada em estádio, mostrou que é possível torcer sem violência. Pagavam suas
próprias viagens e a única coisa que pediram ao então presidente Hélio Dourado
foi uma pequena sala no Olímpico para guardar seus chamativos adereços. Dourado
foi o responsável por finalizar o segundo anel do Olímpico, em 1980. Na
histórica campanha do cimento, contou com o apoio da Coligay, que promovia
festas e arrecadava verba pelo interior gaúcho.
Depois da Coligay, surgiram algumas tentativas semelhantes
em outros clubes. Até no Inter, a Interflowers, que não vingou. A mais famosa
foi a Flagay, em 1979. Que, em sua estreia, viu uma derrota estrondosa para o
Fluminense por 3 a
0. O presidente Marcio Braga disse ter sido “praga” da Flagay, que acabou
caindo em descrédito. O tempo também apagou a importância de uma torcida
organizada homossexual no Rio Grande do Sul enrijecido pela ditadura militar.
Embora todos os gremistas da época reconheçam seu pioneirismo, o clube em si
jamais mencionou o movimento com orgulho ou dedicou algum espaço em seu antigo memorial,
no Olímpico. A Coligay ressurgiu em 2009, numa faixa na Venezuela, quando o
Grêmio enfrentou o Caracas, pela Libertadores. Volmar confirma que ela foi
estendida por antigo membro, que foi morar naquele país após se apaixonar por
um venezuelano.
Agora, a torcida revive, ganha fôlego no texto de Léo
Gerchamnn. “Coligay, tricolor e de todas as cores” é um livro não apenas para
quem gosta de esporte, do Grêmio ou de movimentos pela igualdade. É uma obra
para todos. Como era a Coligay. Como deve ser o futebol.
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